Do ICE

A estruturação do ecossistema de investimento e negócios de impacto no Brasil avança de modo satisfatório ao longo dos últimos anos, e claro, ao se estabelecer, enfrenta desafios em diversas áreas. Na área jurídica, tema pouco abordado de modo geral, esses desafios podem ser classificados em quatro temas centrais: regulação, tributação, estrutura societária e políticas públicas.

Um dos pontos de debate no aspecto regulatório que tem mobilizado muito o campo diz respeito, por exemplo, à associação com organizações da sociedade civil sem fins lucrativos. A possibilidade de as organizações da sociedade civil serem sócias de negócios de impacto e não sofrerem alterações em seu regime tributário foi, inclusive, tema da ação de um grupo de trabalho da Estratégia Nacional de Investimento e Negócios de Impacto (ENIMPACTO) em 2018.

Aline Gonçalves de Souza, pesquisadora da Coordenadoria de Pesquisa Jurídica Aplicada da FGV Direito SP, aponta que há entendimentos diversos por parte da Receita Federal, mas que praticamente todos vão no sentido de reconhecer esse arranjo societário, alguns deles delimitando que não há maiores consequências em termos de impacto no regime tributário das organizações. No entanto, diz ela, “há um parecer da Coordenação Geral de Tributação da Receita Federal (Cosit), de dezembro de 2017, que traz uma decisão, de caráter vinculante – ou seja, válido para todas as outras delegacias tributárias – no sentido de reconhecer que uma organização da sociedade civil, no momento em que passa a ter participação societária em alguma sociedade empresária, seja ou não um negócio de impacto, perderia o direito à imunidade e eventualmente a alguma isenção.”

Apesar disso, ela lembra que há algumas decisões de Tribunais de Justiça que vão em sentido contrário ao posicionamento da Cosit, e que orientações emitidas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Fazenda após a resolução da Cosit mostram que esse entendimento da necessidade de alteração de regime tributário pode estar equivocado. A insegurança jurídica ainda prevalece.

Assim, embora as categorias jurídicas existentes incluam várias modalidades associativas e empresariais, está claro que demandam reinterpretação e adequação para absorver e estimular os negócios de impacto, modos de financiamento e desenvolvimento de atividades econômicas até então proibidas ou tributadas em excesso nas categorias tradicionais.

Ainda na questão da regulação, outro ponto é a popularização dos investimentos. Há hoje uma grande diversidade de investidores possíveis para um negócio de impacto, adequados às diferentes fases de estruturação: investidores anjos, fundos de investimento, empresas, Family offices, associações e fundações etc. Essa diversidade cria possibilidades importantes na mobilização de recursos. E já começaram a emergir novos instrumentos de financiamento, para além dos tradicionais já existentes no mercado financeiro, como as plataformas de financiamentos coletivos em formato de empréstimo (crowdlending) ou investimento ( crowdequity, modalidade em que o investidor recebe como contrapartida uma participação acionária na empresa que apoia); securitização de recebíveis, ou o próprio contrato de impacto social. Essas modalidades proporcionam a obtenção de aporte de recursos de maneira mais inovadora, mas é preciso que tenham uma regulação eficiente para proporcionar maior segurança aos investidores e para que se amplie o acesso dos empreendedores aos recursos.

Em relação à questão tributária, a realização de doações também carece de segurança jurídica. O Brasil é um dos poucos países do mundo que tributam o recebimento de doações. Seja para organizações da sociedade civil ou negócio de impacto, o ITCMD, tributo regulado no âmbito estadual, apresenta variações da alíquota e também nas regras sobre recolhimento desse imposto dependendo do lugar.

Para a pesquisadora Aline, os entraves relacionados a doações que os negócios de impacto enfrentam são os mesmos que estão colocados para as organizações da sociedade civil: têm a ver com onerar a mobilização de um recurso privado recebido por meio de doação. “Mesmo que esse valor esteja sendo aplicado integralmente para gerar impacto social ou ambiental positivo, a legislação brasileira tem poucas previsões de isenção para doações com essa natureza. Alguns estados preveem isenção para certas organizações sem fins lucrativos, que atuam em determinadas áreas, mas não há nenhuma previsão de isenção relevante considerando negócios de impacto”.

As doações estrangeiras são outro ponto de insegurança jurídica. Previstas na Constituição Federal com indicação da necessidade de regulamentação por lei complementar, não editada até hoje, começaram a ser regulamentadas por alguns estados junto ao ITCMD, prevendo sobre elas também a incidência de imposto. “Como isso não seria algo de competência formal dos estados, muitos contribuintes que foram chamados pela Receita Federa para pagar o tributo começaram a judicializar. E os entendimentos são diversos.” conta Aline. Segundo ela, enquanto, por exemplo, no Tribunal de Justiça de São Paulo, a jurisprudência é favorável ao contribuinte, no sentido de não poder a Receita tributar doações do exterior enquanto não houver lei complementar federal, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro o entendimento é que, na ausência dessa lei, o Estado pode cobrar o tributo.

Em dezembro de 2018, uma resolução da Cosit apontou que todos os estados devem cobrar o tributo do ITCMD para doações vindas do exterior. Ao mesmo tempo, Aline aponta que há uma ação sobre isso tramitando no Superior Tribunal Federal, até o momento com parecer favorável ao contribuinte.

Por fim, o que é um desafio, mas também um avanço em termos de políticas públicas, diz respeito à implementação da ENIMPACTO, prevista no decreto nº 9.244/2017, e a ampliação das iniciativas de entes federados para o financiamento e suporte jurídico de startups, cooperativas e associações que promovam a venda de bens e serviços. Essa iniciativa é fundamental para promover a popularização e diversificação dos negócios de impacto. Vários são os desafios para a formalização dos contratos de impacto e de seus aspectos jurídicos. Mas o Brasil avançou muito nessa questão, sendo inclusive pioneiro nessa área no ecossistema global de negócios de impacto.

Com a reforma ministerial do novo governo, a Enimpacto, antes vinculada formalmente ao MDIC (Ministério da Industria, Comércio Exterior e Serviços), passa a ser atribuição do Ministério da Economia, especificamente da Secretaria de Desenvolvimento da Indústria, Comércio, Serviços e Inovação. Conheça os resultados de 2018 clicando aqui.


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